«Tinha esta viola numa mão
uma flor vermelha n'outra mão
tinha um grande amor
marcado pela dor
e quando a fronteira me abraçou
foi esta bagagem que encontrou»
José Mário Branco, Eu Vim de Longe
Quando cheguei a Portugal, não trazia certamente viola alguma numa mão, porque nunca soube que fazer com uma viola; mas se a flor vermelha mencionada pelo José Mário Branco for, sobretudo, o símbolo de sonhos e de esperanças, eis então precisamente o que eu trazia na outra mão. «Quando a fronteira me abraçou», a «bagagem que encontrou» foi isso; isso e um intenso sentido da descoberta. Paradoxal. Eu não "retornava", visto que tinha nascido em Moçambique. Porém, nesse momento, era eu, o africano, quem vinha para descobrir: era eu o descobridor.
Meus pais arrendaram um pequeno apartamento em Cascais. E lembro-me do deslumbramento com que, numa das primeiras noites, atrelado a amigos para quem já nada disso constituía surpresa, subi e desci vezes sem conta a Rua Direita, sem palavras nem respiração, pestanejando perante as montras iluminadas.
A minha salvação deu-se quando entrei por um inesperado e sombrio corredor. Não longe do Jardim Visconde da Luz, existia o Centro Cultural de Cascais. Descobri-o quase por acaso. No Centro (dirigido por um grupo heterogéneo de jovens cultos e generosos) dei aulas de alfabetização: homens e mulheres que não sabiam ler ou escrever vinham pacientemente, noite após noite, e pegavam num lápis como se pega numa ferramenta à qual se não está afeiçoado, para desenhar letras, rijas, tortas, feias: as primeiras letras, aos 50 ou aos 60 anos; participei numa revista; fiz teatro: ensaiámos árdua e divertidamente a peça João Palmieri, que, por alguma razão, nunca levámos à cena.
Mais do que isto: construí laços. Os meus amigos, os de sempre, os eternos, de quem sou aliás um imperfeitíssimo amigo, são os mesmos de então.
Vemo-nos ou não nos vemos, revemo-nos consoante a vida o permite ou nos esforçamos por isso.
Mas o passado que nos liga, e permanece, incólume, é esta história comum, que iniciámos em certo ponto dos anos 80. No Centro Cultural de Cascais.
Gil Duarte

.jpg)
Saudades do tempo, de Cascais, de nós nesse tempo, em Cascais...
ResponderEliminar