terça-feira, 8 de abril de 2014

Cascais


«Tinha esta viola numa mão
uma flor vermelha n'outra mão
tinha um grande amor
marcado pela dor
e quando a fronteira me abraçou
foi esta bagagem que encontrou»

José Mário Branco, Eu Vim de Longe
    

     Quando cheguei a Portugal, não trazia certamente viola alguma numa mão, porque nunca soube que fazer  com uma viola; mas se a flor vermelha mencionada pelo José Mário Branco for, sobretudo, o símbolo de sonhos e de esperanças, eis então precisamente o que eu trazia na outra mão. «Quando a fronteira me abraçou», a «bagagem que encontrou» foi isso; isso e um intenso sentido da descoberta. Paradoxal. Eu não "retornava", visto que tinha nascido em Moçambique. Porém, nesse momento, era eu, o africano, quem vinha para descobrir: era eu o descobridor.
    
     Meus pais arrendaram um pequeno apartamento em Cascais. E lembro-me do deslumbramento com que, numa das primeiras noites, atrelado a amigos para quem já nada disso constituía surpresa, subi e desci vezes sem conta a Rua Direita, sem palavras nem respiração, pestanejando perante as montras iluminadas.


     Desse dia em diante, porém, a luta contra a minha solidão não foi isenta de passos hesitantes e dolorosos. Tinha alguma dificuldade em me integrar. Na escola, os novos colegas olhavam com alguma estupefacção para os meus cabelos pelos ombros, chamavam-me "monhé" e, sem propriamente intenção de me excluírem, mostravam a sua perturbação em lidar comigo. Uma rapariga perguntou-me, sem ironia, se eu costumava ver elefantes. Disse-lhe que, em Moçambique, costumava ir para a escola num elefante.
    
     A minha salvação deu-se quando entrei por um inesperado e sombrio corredor. Não longe do Jardim Visconde da Luz, existia o Centro Cultural de Cascais. Descobri-o quase por acaso. No Centro (dirigido por um grupo heterogéneo de jovens cultos e generosos) dei aulas de alfabetização: homens e mulheres que não sabiam ler ou escrever vinham pacientemente, noite após noite, e pegavam num lápis como se pega numa ferramenta à qual se não está afeiçoado, para desenhar letras, rijas, tortas, feias: as primeiras letras, aos 50 ou aos 60 anos; participei numa revista; fiz teatro: ensaiámos árdua e divertidamente a peça João Palmieri, que, por alguma razão, nunca levámos à cena.



     Mais do que isto: construí laços. Os meus amigos, os de sempre, os eternos, de quem sou aliás um imperfeitíssimo amigo, são os mesmos de então.
Vemo-nos ou não nos vemos, revemo-nos consoante a vida o permite ou nos esforçamos por isso.
Mas o passado que nos liga, e permanece, incólume, é esta história comum, que iniciámos em certo ponto dos anos 80. No Centro Cultural de Cascais.


Gil Duarte

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